Entre a Sexta-feira Santa e o Domingo da Ressurreição, a alma de Cristo baixou à região dos mortos (ou “aos infernos”, como diz explicitamente o texto do Credo apostólico em latim). Esse é um dos artigos mais obscuros da nossa fé, sobretudo porque aconteceu no plano escatológico, não tendo sido testemunhado por ninguém vivo. Mas é, sim, de fé esta doutrina, constante expressamente da Sagrada Escritura, ensinada pelos Santos Padres e confirmada ao longo dos séculos até hoje. 

não vá o leitor confundir a morada dos mortos em geral com o lugar específico dos condenados à perdição eterna. Foi somente àquela, não a esta, que Cristo desceu. Mesmo assim, os efeitos da visita de Cristo “reverberaram” em toda a “mansão dos mortos”, como esclarece Santo Tomás: “Quando Cristo desceu aos infernos, todos que estavam em alguma parte deles foram visitados de certo modo: alguns para seu consolo e libertação, e outros para sua vergonha e confusão”.


Acerca [...] do modo como Cristo tirou do Limbo os Patriarcas, que lá estavam, e o mais que lá fez, os Evangelhos não o explicam abertamente. Contudo, Santo Agostinho num sermão e Nicodemos no seu evangelho [i] esclarecem-no de algum modo. 

Com efeito, Santo Agostinho diz: 

Logo que Cristo expirou, a sua alma, unida à sua Divindade, desceu às profundezas dos Infernos. E, quando chegou ao termo das trevas como um predador esplêndido e terrível, os ímpios e as legiões dos Infernos, ao vê-l’O, ficaram aterrados, e começaram a perguntar: “De onde vem este tão forte, tão terrível, tão resplandecente e tão preclaro? Aquele mundo que nos esteve sujeito nunca nos mandou um morto assim e nunca destinou tão alta dádiva aos Infernos. Quem é este que entra assim tão intrépido no nosso território, como o único que não receia os nossos suplícios e desata os outros dos nossos laços? Aqueles que gemiam com os nossos tormentos já nos insultam por terem recebido a salvação, de modo que não só nada temem como nos ameaçam. Nunca os mortos aqui manifestaram tal orgulho, nem os cativos puderam mostrar tal alegria. Por que quisestes trazê-l’O até aqui? Ó nosso príncipe, toda a tua alegria pereceu e as tuas delícias transformaram-se em luto. Enquanto suspendes Cristo no madeiro, ignoras quantos danos aguentas no Inferno”. Depois destas palavras dos cruéis dominadores do Inferno, todas as trancas de ferro se quebraram por ordem do Senhor e eis que inumeráveis santos do seu povo, prostrados de joelhos, gritavam entre lágrimas: “Chegaste, Redentor do mundo, chegaste; todos dias esperávamos ansiosamente por Ti. Por nós, desceste aos Infernos; não nos deixes quando regressares aos Céus. Sobe, Senhor Jesus; e, depois de espoliares o Inferno e de teres enredado o autor da morte nos seus próprios grilhões, não tardes em nos devolver a alegria, em socorrer o mundo, em extinguir as penas cruéis, mas, cheio de compaixão, solta os cativos; enquanto estás aqui, absolve os réus; e, quando subires, defende os teus”. 

São palavras de Santo Agostinho. 

“Descenso de Cristo ao Limbo”, por Andrea Mantegna.

De fato, lê-se no evangelho de Nicodemos que Carino e Lêucio, filhos do velho Simeão, ressuscitaram com Cristo e, tendo sido muito instados, narraram a Anás, Caifás, Nicodemos, José e Gamaliel o que Cristo fez nos Infernos, dizendo:

Quando estávamos com todos os nossos antepassados na escuridão das trevas, eis que, de repente, surgiu uma cor dourada de sol e uma luz de púrpura régia nos iluminou; logo Adão, o pai do gênero humano, exultou, dizendo: “Esta luz é do autor sempiterno da luz que nos prometeu enviar a sua luz coeterna.”

Isaías exclamou: “Esta é a luz do Pai, filho de Deus, como eu preanunciei quando estava vivo na terra: ‘O povo que andava nas trevas viu uma grande luz’.”

Então, apareceu o nosso pai Simeão e disse, exultando: “Glorificai o Senhor, porque, no Templo, eu recebi nas minhas mãos o Cristo, menino recém-nascido, e, inspirado pelo Espírito Santo, disse então: ‘Agora, Senhor, deixa o teu servo ir em paz, segundo a tua palavra; porque os meus olhos viram a salvação que preparaste…’”

Depois dele, sobreveio alguém que parecia um eremita; perguntamos-lhe quem era, e ele respondia: “Sou João, o que batizou Cristo e que foi na sua frente preparar os seus caminhos, apontando-O com o dedo, dizendo: ‘Eis o Cordeiro de Deus, eis Aquele que tira os pecados do mundo’, e desci a anunciar-vos que Ele virá proximamente visitar-vos.”

Então, Set disse: “Quando fui às portas do Paraíso pedir ao Senhor que me mandasse o seu anjo dar-me do óleo da árvore da misericórdia, para ungir o corpo de meu pai Adão, que estava doente, apareceu-me o anjo Miguel e disse: ‘Não te entregues às lágrimas, pedindo óleo da árvore da misericórdia, pois de modo algum poderás receber algo dele a não ser quando se completarem cinco mil e quinhentos anos’.”

Ao ouvir estas coisas, todos os Patriarcas e Profetas exultaram com grande alegria.

Então, Satã, príncipe e chefe da morte, disse para o Inferno: “Prepara-te para receber Jesus que se gloria de ser Cristo, o Filho de Deus, mas que é um homem que teve medo da morte, porque disse: ‘A minha alma está triste até à morte’, curou muitos a quem eu entortara e fez andar os coxos.”

O Inferno respondeu, dizendo: “Se és poderoso, que homem é esse Jesus que teme a morte e se opõe ao teu poder? Se, na verdade, diz que tem medo da morte é para te enganar, ai de ti, pelos séculos dos séculos!”

Respondeu-lhe Satã: “Tentei-O e excitei o povo contra Ele, afiei a lança, misturei fel e vinagre, preparei o madeiro da cruz e a sua morte está já muito próxima para que O conduza até aqui.”

Perguntou-lhe o Inferno: “Mas esse é aquele que ressuscitou Lázaro, que eu já tinha em meu poder?” E Satã: “É esse mesmo.”

“Conjuro-te — disse o Inferno — pelas tuas forças e pelas minhas que não m’O tragas. Pois, quando ouvi a força da sua palavra, todo eu tremi, sem conseguir sequer segurar aquele Lázaro que, agitando-se como uma águia, se libertou de nós, subindo com toda a agilidade.”

Ainda ele proferia estas palavras quando uma voz se ouviu dizendo como um trovão: “Levantai, ó portas os vossos lintéis; levantai-vos, ó pórticos antigos, para que entre o Rei da Glória!” Quando ouviram isto, correram os demônios e fecharam as portas de bronze com trancas de ferro. Então disse Davi: “Porventura não profetizei eu, dizendo: ‘Ele arrombou as portas de bronze e despedaçou os ferrolhos de ferro?’”

Ouviu-se de novo uma voz fortíssima dizendo: “Levantai-vos, ó portas…” Vendo o Inferno que a voz tinha proferido duas vezes tais exclamações, disse, como se as ignorasse: “Quem é este Rei da Glória?” Respondeu-lhe Davi: “É o Senhor forte e poderoso, o Senhor poderoso na batalha. É ele o Rei da Glória.” Então, surgiu o Rei da Glória, iluminou as trevas eternas e, estendendo a mão, pegou na direita de Adão e disse: “A paz esteja contigo e com todos os teus filhos, os meus justos.” Então o Senhor subiu dos Infernos e todos os Santos O seguiram. E, segurando a mão de Adão, o Senhor entregou-o ao Arcanjo São Miguel, introduzindo-os no Paraíso.

Acorreram dois homens muito idosos que os Santos interrogaram: “Quem sois vós que não estivestes conosco nos Infernos, nem sequer ainda morrestes e fostes colocados com o corpo no Paraíso?” Ao que um deles respondeu: “Eu sou Enoch, que fui trasladado para aqui; este, porém, é Elias que foi trazido para este lugar num carro de fogo. Por isso, ainda não provamos a morte, pois fomos reservados para o advento do Anticristo, a fim de lutarmos com ele e sermos mortos por ele; passados três dias e meio seremos levados nas nuvens.”

Enquanto dizia estas coisas, eis que chegou outro homem que carregava o sinal da cruz aos ombros; tendo-o alguém interrogado, disse: “Fui ladrão e crucificado com Jesus, acreditei que Ele é o Criador e pedi-Lhe, dizendo: ‘Lembra-te de mim, Senhor, quando chegares ao teu Reino’. Então Ele disse-me: ‘Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso’. E deu-me este sinal da cruz, dizendo: ‘Leva isto e anda pelo Paraíso; e, se o anjo da guarda não te deixar entrar, mostra-lhe o sinal da cruz e diz-lhe: Foi Cristo, que agora está crucificado, quem me enviou para cá’. Quando eu fiz e disse isto, imediatamente o anjo abriu a porta e introduziu-me e colocou-me à direita do Paraíso.”

Depois de Carino e Lêucio terem falado, foram repentinamente transfigurados e nunca mais foram vistos. 

“Descenso ao Limbo”, pintura do século XV.

Também São Gregório Nisseno, ou talvez Santo Agostinho, falou destes acontecimentos: 

De repente, a noite eterna dos Infernos resplandeceu, quando Cristo desceu, e logo os negros porteiros murmuraram uns com os outros pelo medo que pesava naquele silêncio sombrio: “Na verdade, quem é este ser terrível que cintila com tamanho esplendor? Nunca o nosso Inferno acolheu nem o mundo lançou na nossa caverna alguém assim; é um invasor, não devedor; é um ladrão, um destruidor; não é um pecador, mas um saqueador. Vemos um juiz e não um pedinte; veio para combater e não para sucumbir, para buscar outros e não para ficar.”

Referências

  • Tiago de Voragine, Legenda Áurea: A vida dos Santos. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2023, pp. 288-291.

Notas

  1. “Evangelho de Nicodemos”, ou “Atos de Pilatos”, é um livro apócrifo, atribuído ao Nicodemos dos Evangelhos canônicos, mas cujo conteúdo muito provavelmente remonta ao século IV ou V d.C. Seu autor foi ou um judeu helenista convertido ao cristianismo, ou um cristão imbuído de crenças judaicas e gnósticas. (Nota da Equipe CNP.)

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